Tuesday, July 16, 2013

Uma estória para Maddy

Eu sei que já te contei essa estória, mas vou contar de novo só pra ver se atraio o sono.

Diziam os meus pais que na infância deles as terras eram cobertas de verde. Grupos grandes de alces percorriam as colinas, alimentando-se de vários tipos de ervas que cresciam sem que nenhum esforço fosse necessário. Lá embaixo, no fundo do penhasco que fica atrás da nossa casa, corria um riacho que seguia crescendo, cada vez mais cheio de peixes, até encontrar a Lança de Sal. Por entre as árvores, pássaros cantavam – especialmente quando a luz subia ou descia numa coisa que minha mãe dizia ser chamada de “horizonte”. Essa linha que passava onde a vista alcança era o que ela me disse que sentia mais falta, pouco tempo antes de virar um deles.

Menino ou menina, você tem que aprender a usar as adagas de vidro. A correr pelo gelo em direção a qualquer vestígio de luz. E o mais difícil, que é escutar a chegada dos mortos. Eles nunca dormem e andam sem pressa pela neve, mesmo quando ela está tão alta que nós não conseguimos cruzar até a Vila Acidentada. Não que isso seja algo que fazemos sempre, é claro. É perigoso demais viajar para qualquer direção, e é por isso que só fomos quando a fome não nos deu escolha. Da última vez, um grupo de nove pessoas retornou com apenas cinco.

Eu ainda não te falei isso, mas a comida que trouxemos deve acabar logo, apesar da habilidade que o tio Harmond possui para aproveitar cada pedaço de nabo, cada grão-de-bico e os restos de aveia que ficam colados no interior dos sacos de estopa.  Ele disse que não compensa mais tentar encontrar alimentos na vila e precisamos sair dessa estalagem. As palavras que trocamos sobre o assunto são nervosas, sem esperança. Eu vi os mais velhos sussurrando entre si. E, quando passava pelo corredor de cima para começar o meu turno na janela, vi também que no quarto pequeno estão estocando qualquer pano que encontram, provavelmente pra fazermos tochas suficientes para arriscar uma salvação. Tive vergonha quando vi, no meio deles, dois dos panos que usei pra conter o sangue passado, mas Lynesse me falou que eu não devo me preocupar com isso. É muito bom ter outra garota por perto, mesmo ela sendo já uma mulher.

Apesar de nunca ter saído, Maddy, você deve sentir medo também, não é? Eles não vão te pegar, é claro, mas eu teria medo mesmo assim, se fosse você. Eu acho que em breve vamos tentar caminhar ao longo do rio congelado, na direção das terras menos frias. É a única chance. Não gosto de pensar nisso, mas com certeza seria pior ficar aqui. Se vamos ter que enfrentar o escuro para achar outro abrigo, mais comida e mais pessoas vivas, que seja logo. Não sei como vai ser para dormir, nunca precisamos fazer isso ao relento em qualquer viagem para a Vila Acidentada. Rezo aos deuses que permitam um caminho sem nevascas e sem muitos encontros com os mortos ou, pior ainda, aranhas de gelo e caminhantes brancos.

É claro que eu vou levar você e não vou deixar que você caia na descida pro rio, até se o vento estiver furioso.  Dentro das esteiras que vamos puxar deve ter um cantinho aconchegante pra te guardar. Quando tudo estiver mais calmo eu vou fazer outra roupa pra você. Queria muito achar outras cores, quem sabe de algum vestido que já foi de uma dama de sangue nobre, pra você ficar bem bonita e esperar comigo pelo dia em que o Sol vai sair. Agora vamos deitar.

(Day 2: Write a fanfiction)

Monday, July 15, 2013

Um flautista mágico

Era uma vez uma cidade assolada por uma horda de ratos. Eles comiam grande parte dos estoques da merenda escolar, infectavam instalações hospitalares, andavam livres a roer mercadorias nas feiras, sujavam os canteiros e as vielas da periferia. A cada dia tornavam-se mais ousados: seus hábitos quebraram os limites do período noturno e os maiores deles aninharam-se na cúpula da prefeitura. Os habitantes não sabiam dizer quando começou a praga, pois ela vinha crescendo em ciclos que se alternavam desde tempos imemoriais. É bem possível que os primeiros ratos tenham chegado com os colonos fundadores.

Incapazes de livrarem-se do problema por conta própria, as pessoas seguiam com suas vidas da melhor maneira possível, adaptando-se à convivência com a destruição permanente de uma parcela razoável das riquezas produzidas pelo trabalho dos que insistiam em viver na cidade e torná-la melhor. De tempos em tempos surgiam lideranças que juravam ter uma solução.

Entretanto, no ano em que o flautista mágico chegou, era comum que os anciões comentassem – para os ouvidos de qualquer um que passasse ao alcance das suas vozes cansadas – que suas memórias não guardavam registro de tanto sofrimento quanto aquele que era então causado por aqueles animais inescrupulosos.

Aquele músico não era um artista qualquer. Aprendera desde cedo a encantar qualquer ser vivente com as melodias produzidas pelos seus instrumentos. Especialmente uma flauta negra obtida furtivamente no estrangeiro, muitos anos atrás, em uma visita ao palácio de um vizir.

O flautista correu para apresentar aos líderes locais uma solução que não poderia ter surgido antes da sua chegada: encantar a rataria e fazê-la adentrar o leito do grande rio que corria pela região. É claro que nenhum dos representantes do povo deu crédito à proposta, que era tão absurda. Alguns deles, inclusive, receberam a idéia com desconfiança e temor, pois a praga de ratos era o pivô das suas táticas de ascensão no poder.

Descendo as escadarias da prefeitura era possível avistar, em sua inteireza, a ampla praça que unia as principais ruas da cidade. Ao redor das fontes (que um dia já foram livres da sujeira dos ratos) e por entre os postes, os transeuntes voltavam apressados para suas casas. O flautista, iluminado pela luz decrescente da tarde, demorou um par de minutos observando com interesse. Por sua vez, alguns roedores apontaram seus olhos vermelhos para aquela figura esguia que vestia roupas extravagantes e segurava uma longa flauta.

O zelador-mestre mal pôde conter seu espanto quando, ao abrir as portas e janelas do palácio municipal na manhã seguinte, viu milhares de jovens e crianças se juntarem na grande praça. Naquele dia as creches, escolas e universidades ficaram praticamente vazias. Maior ainda foi a confusão dos parlamentares e do prefeito, que acordaram ao som inescapável da multidão. Em uníssono, ela pedia o fim dos ratos.

Liderados pelo flautista, um grupo de manifestantes passou, sem qualquer embaraço, pelos guardas postados na entrada da prefeitura. Subiram como um redemoinho pelos lances de mármore até o salão de reuniões, onde já se encontravam os representantes eleitos. Muitos ainda vestiam seus pijamas enquanto lutavam entre si para ter o direito à palavra e consigo mesmos para encontrar, na mente revolta, algum caminho que conduzisse à compreensão da cena que se revelava através dos finos vidros dos janelões.

Quando a porta se abriu para o flautista e sua comitiva, teria reinado o silêncio naquele recinto – não fosse pelo som das ruas e pelo distinto ruído das ratazanas inquietas, ocultas acima da laje ornamentada.

Desta vez a proposta de afogar o problema histórico dos ratos foi expressa somente pelas vozes das crianças que acompanhavam o músico. Mascaradas, portando estilingues e espadas de madeira, elas precisaram de pouco tempo para ter suas exigências aceitas pelos indefesos administradores públicos. Então, sem proferir qualquer palavra, o flautista mágico começou a alçar melodias especialmente improvisadas para a ocasião.

Enquanto retornava despreocupado para a rua, uma fileira de grandes roedores começou a se formar atrás dele. Ela seguia, hipnotizada, com pequenos passos que eram sequenciados como as notas produzidas pelos dedos do instrumentista. A multidão abriu caminho, boquiaberta, para aquele estranho desfile que passou lentamente pelo chão de ladrilhos imundos. Quando chegou ao extremo oposto da praça, a quantidade de ratos havia multiplicado inúmeras vezes.

Descendo as ladeiras rumo ao vale que margeava o volumoso rio, um exército marchava atrás do forasteiro. Sem ousar colocar os pés para fora de casa, os habitantes fitavam a expressão sorridente daquele rapaz, que era tão impressionante quanto a enxurrada cinzenta que foi atraída pela música.

Sem parar de tocar, eis que o flautista mágico, já largamente reconhecido como tal, chegou à margem do rio. Na ponta de um velho cais, virou-se para a quantidade imensurável de ratos que o seguiam, e também para as muitas pessoas que testemunhavam de longe. O ritmo do solo acelerou, carregado da mesma malícia que o semblante dele transmitiu enquanto a massa de roedores mergulhava nas águas escuras para nunca mais voltar.

Notado por ninguém, um único rato escapou à matança, pois era surdo. Do alto de uma pessegueira ele viu tudo e chorou a morte dos seus parentes, que eram muitos. Partiu, durante a noite, em busca da mítica Terra dos Ratos, carregando consigo um punhado de azeitonas, um pedaço de queijo velho e um grosso livro vermelho que continha o nome de todos os que pereceram naquele dia. Enquanto se afastava da cidade o sobrevivente foi incapaz de ouvir o som dos fogos, das canções, das risadas e dos vivas ao músico, que, no que dependesse dele, seria eternamente lembrado como o maior inimigo da espécie.

No dia seguinte, durante a cerimônia realizada em sua homenagem, o flautista mágico recebeu a chave municipal dourada, o título de cidadão honorário e dirigiu-se à multidão ávida pelas palavras do grande homem que, com um só golpe, havia transformado a vida de todos. Durante seu breve pronunciamento o flautista proclamou-se prefeito e prometeu uma era de prosperidade. A aclamação foi tamanha que o governante previamente empossado retirou-se sem nenhuma queixa: algumas horas depois já havia despachado seus pertences do palácio e retornado com a família para a antiga casa.

Anos se passaram, e neles a cidade tornou-se uma das mais ricas do mundo. Comerciantes, artistas, professores, engenheiros, fazendeiros e diversos outros tipos de profissionais, de todas as classes, trouxeram suas famílias para morar naquela urbe livre de ratos. As ruas e praças nunca haviam sido tão limpas. Quadros, mosaicos e diversas formas de artesanato foram utilizadas para retratar os feitos do flautista mágico e a sua figura, cada vez mais cultuada.

Ele apresentava um recital a cada solstício de verão. O evento atraía nobres e burgueses dos mais longínquos países. Através da sua música seu prestígio era amplificado, e também o seu poder. Ninguém mais fez questão de eleger outro governante, pois era inconcebível que alguém pudesse ocupar tão bem o cargo.

Em qualquer outro dia do ano, pouquíssimas pessoas tinham o privilégio de vê-lo. Até mesmo os funcionários da prefeitura e os parlamentares tinham extrema dificuldade para contatá-lo diretamente. Era difícil precisar quando ele estava presente no palácio. Nas reuniões eram comuns os anúncios enviados pelo flautista, que, sem questionamentos, serviam para nortear a governança da cidade, cada vez mais complexa.

Num belo entardecer de verão, no dia marcado para a apresentação anual do flautista, aconteceu de ele não aparecer. O constrangimento era patente nas expressões dos oficiais que conduziam a festa. Logo a multidão tornou-se apreensiva e já era quase impossível ouvir qualquer som além do falatório dos presentes. Os mais exaltados rebaixaram suas discordâncias ao nível das agressões físicas, que rapidamente passaram a serem tantas que os guardas não conseguiam mais contê-las. Desavenças antigas afloraram e o medo de um futuro sem o grande líder tornava as pessoas insensíveis ao bom senso e à civilidade.

Durante a noite centenas de lojas foram saqueadas e incendiadas, assassinatos foram cometidos, prisioneiros foram torturados e muitos outros crimes perversos ocorreram, por variados motivos. Ninguém se sentiu seguro em sua casa, pois elas foram palco para grande parte das violências desencadeadas pelo súbito colapso da sociedade local. Milhares de habitantes fugiram para outras regiões carregando o pouco que podiam. A prefeitura foi consumida pelas chamas sem que ninguém tentasse combatê-las.

Por muito tempo surgiram relatos de viajantes que, ao percorrerem as trilhas que serpenteavam pelas montanhas mais íngremes ou cortavam secamente as planícies pouco cultivadas, escutavam o som de uma flauta.

A cidade fora reduzida a um grotesco conjunto de habitações que, quando ocupadas, abrigavam pobres-coitados que viviam de recolher os espólios do período de grandeza ou malfeitores que os oprimiam e atacavam os raros viajantes que passavam pela região. Seu nome, sua localização e seu destino perderam-se no tempo sem registro.

Quanto ao flautista, há quem diga que viveu o resto dos seus dias assumindo outras identidades, para espantar o tédio. Alguns acreditam que vive até hoje e só toca flauta quando se apresenta com sua banda de jazz, em temporadas curtas realizadas exclusivamente em cruzeiros transoceânicos.

(Day 1: Re-write a classic fairy tale)

30 Day Writing Challenge

Resolvi encarar o desafio "30 Day Creative Writing Challenge" , disponível no link: http://mycreativewritingchallenge.tumblr.com/post/16858313832/30-day-creative-writing-challenge

À medida que for terminando os textos, vou postando aqui. Espero conseguir fazer todos os trinta, no tempo determinado pela proposta. 

Logo no primeiro já vi que é difícil, eu sou lento pra escrever (pela falta de costume, imagino) e fico sofrendo com as dúvidas.

E nem todos os dias eu tenho todo tempo disponível, é claro, mas vamos lá, ver se eu tenho o mínimo necessário pra completar as escritas, pelo menos.

Vou postá-los sem fazer comentários, só pra ter onde colocar e mostrar pros interessados.

Thursday, July 04, 2013

Balance and Ruin

Seria um texto analítico, declamatório talvez. Sobre como eu me aproveito e ao mesmo tempo sofro com a minha instabilidade. Que na verdade só é possível mediante algumas condições bem estáveis. Uma instabilidade que gera estagnação. Um desconforto que vem do conforto. Mas acho que basta dizer só isso mesmo, pra não correr o risco de querer apagar afirmações irrefletidas.