Tuesday, March 18, 2014

do livro "A Peste" (Albert Camus)

pg. 58


"Assim, a primeira coisa que a peste trouxe a nossos concidadãos foi o exílio. E o narrador está convencido de que pode escrever aqui, em nome de todos, o que ele próprio sentiu então, já que o sentiu ao mesmo tempo que muitos dos nossos concidadãos. Sim, era realmente o sentimento do exílio esse vazio que trazíamos constantemente dentro de nós, essa emoção precisa, o desejo irracional de voltar atrás ou, pelo contrário, de acelerar a marcha do tempo, essas flechas ardentes da memória. Se algumas vezes dávamos asas à imaginação e nos comprazíamos em esperar pelo toque de campainha que anuncia o regresso, ou pelos passos familiares na escada; se, nesses momentos, consentíamos em esquecer que os trens estavam imobilizados, se nos organizávamos para ficar em casa à hora em que normalmente um viajante podia ser trazido pelo expresso da tarde até nosso bairro, esses jogos obviamente podiam durar. Chegava sempre um momento em que nos dávamos conta claramente de que os trens não chegavam. Sabíamos, então, que nossa separação estava destinada a durar e que devíamos tentar entender-nos com o tempo. A partir de então, nos reintegrávamos, afinal, à nossa condição de prisioneiros, estávamos reduzidos ao nosso passado e, ainda que alguém fosse tentado a viver no futuro, logo renunciava, ao experimentar as feridas que a imaginação finalmente inflige aos que nela confiam"


pg. 59

"Experimentavam assim o sofrimento profundo de todos os prisioneiros e de todos os exilados, ou seja, viver com uma memória que não serve pra nada. Esse próprio passado, sobre o qual refletiam sem cessar, tinha apenas o gosto do arrependimento. Na verdade, gostariam de poder acrescentar-lhe tudo quanto lamentavam não ter feito, quando ainda podiam fazê-lo, junto a esse ou aquela que esperavam - assim como misturavam o ausente a todas as circunstâncias de sua vida de prisioneiros, mesmo as relativamente felizes, e o resultado não podia satisfazê-los. Impacientes com o presente, inimigos do passado e privados do futuro, parecíamo-nos assim efetivamente com aqueles que a justiça ou o ódio humano faziam viver atrás das grades."

pg. 61-62

"Enfim, nesses extremos da solidão ninguém podia contar com o auxílio do vizinho, e cada um ficava só com sua preocupação. Se alguém, por acaso, tentava fazer confidências ou dizer alguma coisa do seu sentimento, a resposta que recebia, qualquer que fosse, magoava na maior parte das vezes. Compreendia então que ele e o interlocutor não falavam da mesma coisa. Com efeito, ele se exprimia do fundo de longos dias de ruminação e de sofrimentos, e a imagem que queria transmitir ardera muito tempo no fogo da espera e da paixão. O outro, pelo contrário, imaginava uma emoção convencional, a dor que se vende nos mercados, uma melancolia em série. Amável ou hostil, a resposta caía sempre no vazio, era preciso renunciar a ela. Ou, pelo menos, para aqueles a quem o silêncio era insuportável, já que os outros não conseguiam encontrar a verdadeira linguagem do coração, resignavam-se a adotar a língua dos mercados e a falar, também eles, de maneira convencional, a do simples relato e do noticiário, da crônica cotidiana, de certo modo. Ainda nesse caso, as dores mais verdadeiras adquiriram o hábito de se traduzir em fórmulas banais de conversação. Só por esse preço podiam os prisioneiros da peste obter a compaixão dos porteiros ou o interesse dos ouvintes."

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