Um flautista mágico
Era uma vez uma cidade assolada por uma horda de ratos. Eles
comiam grande parte dos estoques da merenda escolar, infectavam instalações
hospitalares, andavam livres a roer mercadorias nas feiras, sujavam os canteiros
e as vielas da periferia. A cada dia tornavam-se mais ousados: seus hábitos
quebraram os limites do período noturno e os maiores deles aninharam-se na
cúpula da prefeitura. Os habitantes não sabiam dizer quando começou a praga, pois
ela vinha crescendo em ciclos que se alternavam desde tempos imemoriais. É bem
possível que os primeiros ratos tenham chegado com os colonos fundadores.
Incapazes de livrarem-se do problema por conta própria, as
pessoas seguiam com suas vidas da melhor maneira possível, adaptando-se à
convivência com a destruição permanente de uma parcela razoável das riquezas
produzidas pelo trabalho dos que insistiam em viver na cidade e torná-la
melhor. De tempos em tempos surgiam lideranças que juravam ter uma solução.
Entretanto, no ano em que o flautista mágico chegou, era
comum que os anciões comentassem – para os ouvidos de qualquer um que passasse
ao alcance das suas vozes cansadas – que suas memórias não guardavam registro
de tanto sofrimento quanto aquele que era então causado por aqueles
animais inescrupulosos.
Aquele músico não era um artista qualquer. Aprendera desde
cedo a encantar qualquer ser vivente com as melodias produzidas pelos seus
instrumentos. Especialmente uma flauta negra obtida furtivamente no
estrangeiro, muitos anos atrás, em uma visita ao palácio de um vizir.
O flautista correu para apresentar aos líderes locais uma
solução que não poderia ter surgido antes da sua chegada: encantar a rataria e
fazê-la adentrar o leito do grande rio que corria pela região. É claro que
nenhum dos representantes do povo deu crédito à proposta, que era tão absurda.
Alguns deles, inclusive, receberam a idéia com desconfiança e temor, pois a
praga de ratos era o pivô das suas táticas de ascensão no poder.
Descendo as escadarias da prefeitura era possível avistar,
em sua inteireza, a ampla praça que unia as principais ruas da cidade. Ao redor
das fontes (que um dia já foram livres da sujeira dos ratos) e por entre os
postes, os transeuntes voltavam apressados para suas casas. O flautista,
iluminado pela luz decrescente da tarde, demorou um par de minutos observando com
interesse. Por sua vez, alguns roedores apontaram seus olhos vermelhos para
aquela figura esguia que vestia roupas extravagantes e segurava uma longa
flauta.
O zelador-mestre mal pôde conter seu espanto quando, ao
abrir as portas e janelas do palácio municipal na manhã seguinte, viu milhares
de jovens e crianças se juntarem na grande praça. Naquele dia as creches,
escolas e universidades ficaram praticamente vazias. Maior ainda foi a confusão
dos parlamentares e do prefeito, que acordaram ao som inescapável da multidão.
Em uníssono, ela pedia o fim dos ratos.
Liderados pelo flautista, um grupo de manifestantes passou,
sem qualquer embaraço, pelos guardas postados na entrada da prefeitura. Subiram
como um redemoinho pelos lances de mármore até o salão de reuniões, onde já se
encontravam os representantes eleitos. Muitos ainda vestiam seus pijamas enquanto
lutavam entre si para ter o direito à palavra e consigo mesmos para encontrar,
na mente revolta, algum caminho que conduzisse à compreensão da cena que se
revelava através dos finos vidros dos janelões.
Quando a porta se abriu para o
flautista e sua comitiva, teria reinado o silêncio naquele recinto – não fosse
pelo som das ruas e pelo distinto ruído das ratazanas inquietas, ocultas acima da
laje ornamentada.
Desta vez a proposta de afogar o problema histórico dos ratos
foi expressa somente pelas vozes das crianças que acompanhavam o músico.
Mascaradas, portando estilingues e espadas de madeira, elas precisaram de pouco
tempo para ter suas exigências aceitas pelos indefesos administradores
públicos. Então, sem proferir qualquer palavra, o flautista mágico começou a
alçar melodias especialmente improvisadas para a ocasião.
Enquanto retornava despreocupado para a rua, uma fileira de
grandes roedores começou a se formar atrás dele. Ela seguia, hipnotizada, com
pequenos passos que eram sequenciados como as notas produzidas pelos dedos do
instrumentista. A multidão abriu caminho, boquiaberta, para aquele estranho
desfile que passou lentamente pelo chão de ladrilhos imundos. Quando chegou ao
extremo oposto da praça, a quantidade de ratos havia multiplicado inúmeras
vezes.
Descendo as ladeiras rumo ao vale que margeava o volumoso
rio, um exército marchava atrás do forasteiro. Sem ousar colocar os pés para
fora de casa, os habitantes fitavam a expressão sorridente daquele rapaz, que era
tão impressionante quanto a enxurrada cinzenta que foi atraída pela música.
Sem parar de tocar, eis que o flautista mágico, já
largamente reconhecido como tal, chegou à margem do rio. Na ponta de um velho
cais, virou-se para a quantidade imensurável de ratos que o seguiam, e também
para as muitas pessoas que testemunhavam de longe. O ritmo do solo acelerou,
carregado da mesma malícia que o semblante dele transmitiu enquanto a massa de
roedores mergulhava nas águas escuras para nunca mais voltar.
Notado por ninguém, um único rato escapou à matança, pois
era surdo. Do alto de uma pessegueira ele viu tudo e chorou a morte dos seus parentes,
que eram muitos. Partiu, durante a noite, em busca da mítica Terra dos Ratos,
carregando consigo um punhado de azeitonas, um pedaço de queijo velho e um
grosso livro vermelho que continha o nome de todos os que pereceram naquele
dia. Enquanto se afastava da cidade o sobrevivente foi incapaz de ouvir o som
dos fogos, das canções, das risadas e dos vivas ao músico, que, no que
dependesse dele, seria eternamente lembrado como o maior inimigo da espécie.
No dia seguinte, durante a cerimônia realizada em sua
homenagem, o flautista mágico recebeu a chave municipal dourada, o título de
cidadão honorário e dirigiu-se à multidão ávida pelas palavras do grande homem
que, com um só golpe, havia transformado a vida de todos. Durante seu breve
pronunciamento o flautista proclamou-se prefeito e prometeu uma era de
prosperidade. A aclamação foi tamanha que o governante previamente empossado retirou-se
sem nenhuma queixa: algumas horas depois já havia despachado seus pertences do
palácio e retornado com a família para a antiga casa.
Anos se passaram, e neles a cidade tornou-se uma das mais
ricas do mundo. Comerciantes, artistas, professores, engenheiros, fazendeiros e
diversos outros tipos de profissionais, de todas as classes, trouxeram suas
famílias para morar naquela urbe livre de ratos. As ruas e praças nunca haviam
sido tão limpas. Quadros, mosaicos e diversas formas de artesanato foram utilizadas
para retratar os feitos do flautista mágico e a sua figura, cada vez mais
cultuada.
Ele apresentava um recital a cada solstício de verão. O
evento atraía nobres e burgueses dos mais longínquos países. Através da sua
música seu prestígio era amplificado, e também o seu poder. Ninguém mais fez
questão de eleger outro governante, pois era inconcebível que alguém pudesse
ocupar tão bem o cargo.
Em qualquer outro dia do ano, pouquíssimas pessoas tinham o
privilégio de vê-lo. Até mesmo os funcionários da prefeitura e os parlamentares
tinham extrema dificuldade para contatá-lo diretamente. Era difícil precisar
quando ele estava presente no palácio. Nas reuniões eram comuns os anúncios
enviados pelo flautista, que, sem questionamentos, serviam para nortear a
governança da cidade, cada vez mais complexa.
Num belo entardecer de verão, no dia marcado para a
apresentação anual do flautista, aconteceu de ele não aparecer. O
constrangimento era patente nas expressões dos oficiais que conduziam a festa.
Logo a multidão tornou-se apreensiva e já era quase impossível ouvir qualquer
som além do falatório dos presentes. Os mais exaltados rebaixaram suas
discordâncias ao nível das agressões físicas, que rapidamente passaram a serem
tantas que os guardas não conseguiam mais contê-las. Desavenças antigas
afloraram e o medo de um futuro sem o grande líder tornava as pessoas
insensíveis ao bom senso e à civilidade.
Durante a noite centenas de lojas foram saqueadas e
incendiadas, assassinatos foram cometidos, prisioneiros foram torturados e muitos
outros crimes perversos ocorreram, por variados motivos. Ninguém se sentiu
seguro em sua casa, pois elas foram palco para grande parte das violências
desencadeadas pelo súbito colapso da sociedade local. Milhares de habitantes
fugiram para outras regiões carregando o pouco que podiam. A prefeitura foi
consumida pelas chamas sem que ninguém tentasse combatê-las.
Por muito tempo surgiram relatos de viajantes que, ao
percorrerem as trilhas que serpenteavam pelas montanhas mais íngremes ou
cortavam secamente as planícies pouco cultivadas, escutavam o som de uma
flauta.
A cidade fora reduzida a um grotesco conjunto de habitações que,
quando ocupadas, abrigavam pobres-coitados que viviam de recolher os espólios
do período de grandeza ou malfeitores que os oprimiam e atacavam os raros
viajantes que passavam pela região. Seu nome, sua localização e seu destino
perderam-se no tempo sem registro.
Quanto ao flautista, há quem diga que viveu o resto dos seus
dias assumindo outras identidades, para espantar o tédio. Alguns acreditam que vive
até hoje e só toca flauta quando se apresenta com sua banda de jazz, em temporadas curtas realizadas exclusivamente
em cruzeiros transoceânicos.
(Day 1: Re-write a classic fairy tale)
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